O despertador acordou, espalhafatoso e irrequieto, e só sossegou quando a mão de Antonino Santoro lhe caiu em cima desastrada, mas eficiente. Insensível ao aviso mecânico, Antonino voltou-se para o outro lado, ajeitou os cobertores, fechou os olhos e voltou a adormecer. Bem, não era verdadeiramente voltar às delícias do sono; era ficar com os sentidos entorpecidos num misturar da realidade vinda da rádio, que teimava em noticiar factos que para nada lhe interessavam, e a fantasia dos sonhos que afloravam à consciência, numa mescla surrealista bem temperada de fantasia e imaginação. Era uma dezena de minutos mágicos! Ali a realidade não feria, nem os sonhos contrariavam a realidade dos dias. Não destrinçava o sonho da realidade matinal que, bem audível, lhe entrava pela porta dentro sem cumprir a sua função de o manter desperto. Este momento terminava, quase sempre, quando Sturky, o cão da família, era convidado, pela mãe de Santoro, a invadir o quarto onde o silêncio indicava que o sono vencera o despertador e o filho continuava insensível ao passar dos minutos. Eufórico, o cão abanava a cauda, espanando tudo à sua volta. O focinho húmido não parava de procurar a face ainda sonolenta do jovem que, recusando a lambidela canina, saltava da cama num só movimento e apressava-se a acalmar o entusiasmo do jovem pastor alemão que logo sossegava recompensado.
- O comboio sai às 8:20! Vais perder a primeira aula! Hoje é que vai ser? Sentenciava a mãe, repetitiva, em tom de ralhete. Depois dos cuidados básicos em passo de corrida, arrumada a mochila, engolia o pequeno-almoço sem pausas e despedia-se daí a pouco com um sorriso e um beijo apressado. Lançava a mochila para as costas, e aí ia ele com a destreza da adolescência; já a bicicleta rodava ainda estendia a mão à cauda do seu definitivo despertador, num cumprimento de despedida.
Algumas pedaladas esforçadas davam início ao contra-relógio. Ainda não tinha atingido o ritmo certo já a enorme ladeira lhe retardava a progressão. O peito enchia aspirando ofegante o ar fresco de uma manhã de Abril. A demorada inclinação despertava-lhe os ossos definitivamente, resultado de um esforço que quase lhe fazia ranger as articulações ainda frias para esforço tão intenso. No cimo pousava o traseiro no selim e respirava fundo, ganhando novo fôlego para fazer, enquanto o Diabo esfrega o olho, os dois quilómetros que o separavam do apeadeiro. Durante aquele percurso sofrido não pensava. Ou melhor só pensava no que faltava percorrer; pensava nos minutos cavalgando os ponteiros do relógio sem parar e no fôlego que já lhe faltava.
- Oh menino corra que já saiu da estação! Cuidado ao atravessar a linha!Abandonava a companheira, em passo de corrida, junto à parede branca da casa da velhota que a guardava de seguida no alpendre. Corria, desalmado, pelo caminho de areia, até à linha do comboio, numa aflição repetida, pois a enorme lagarta de ferro já lá estava, como em quase todos os dias. Atravessava os carris num desespero precipitado e perigoso de adolescente e olhava para o «pica», que já estava de mão erguida para dar o sinal de partida, suplicando com o olhar, só alguns segundos mais.Entrava quase esbaforido, ofegante na primeira porta junto à locomotiva que se fechava pesada com estrondo atrás das suas costas. Recuperava a respiração enquanto atravessava as carruagens para se juntar aos colegas que, invariavelmente, ficavam sentados na última. Durante a caminhada aos solavancos pelo corredor instável da composição o cérebro começava a reagir. Finalmente pensava em algo que não fosse no transporte que o levava à escola. Um sorriso aqui, um bom dia ali, sempre que via alguém conhecido, e era tudo... Poucas palavras... As ideias clareavam-se no cérebro e ele que desde o toque do despertador não sabia quem era nem o que fazia tomava agora consciência de si.
Antonino Santoro, conhecido pelo diminutivo carinhoso que aninhava em um, o nome próprio e o apelido resultando num agradável Santorino, era um adolescente de 15 anos, estudante do nono ano do ensino básico. Tinha chumbado no ano passado e estava a repetir tudo de novo. Nada lhe tinha custado mais na vida do que ver na pauta, à frente do seu nome, a palavra
-Reprovado. - Merda! Que andei eu a fazer? Quatro negas? E ainda tinha perdido dias de sol a estudar, com uma réstia de esperança para o exame de Físico-Química, mas nada feito! No fim de tudo o 2 continuava lá e ainda tinha ganho mais um; resultado de um exame deplorável a Desenho Técnico! Não sabia fazer uma parábola?! Bem feito! Serviu-lhe de emenda.Este ano é um aluno com a cabeça nas aulas. Cresceu bastante, de um ano para o outro, à custa de ouvir os professores repetirem as matérias e fórmulas ensinadas no ano anterior, época em que tudo parecia ficar a pairar no seu cérebro em vagas noções e ideias soltas quase sem sentido nem interesse quando comparadas com o reboliço juvenil que era a sua vida aos 14 anos. Agora não quer repetir a façanha de terminar o ano coberto de faltas, sem notas dignas como no ano anterior, e ter que voltar a fazer aqueles estúpidos exames! Marcar passo não! Só as equações de segundo grau não lhe davam hipótese? Não tinha as bases, para cálculos tão elaborados! Passa sem a Matemática. Também, para o ano já não vai precisar dela. A área de Humanísticas faz parte dos seus planos para continuar até à universidade. Gosta de ler, desembaraça bem as línguas estrangeiras, até escreve umas coisas onde conta em tentativas poéticas o que não partilha nem com o melhor amigo.
O seu ar de adolescente, deixava transparecer um segredo que o preocupava, mas, excepto eu, ninguém se dava conta. Santorino era um jovem como todos os outros: tinha uma namorada, por conta de quem saltava algumas aulas. Tinha amigos com quem desfilava avenida abaixo, avenida acima num passeio sem norte. Era um rapaz mais virado para as coisas do entendimento. Sem ser vistoso aos olhos das raparigas tinha algumas fãs a que não dava grande atenção, aliás o interesse das miúdas parecia passar-lhe ao lado. Bastava-lhe aquela com quem andava. Ria e divertia-se com as brincadeiras que fazem rir os jovens da sua idade. Ah! Tinha uma faceta pouco usual para a sua idade: a religião! Quem diria? Uma igreja evangélica contava com o seu empenho todos os Domingos. Até aos Sábados as reuniões de jovens contavam com a sua militante presença e colaboração activa.
Gostava de ficar sozinho enfiando a cabeça nos seus pensamentos. Estar só não o atormentava, antes o sossegava e o libertava. Quando o abordavam perguntando em que pensava respondia sem graça: - Na morte da bezerra, palerma! Ou então um pouco mais mordaz: - Penso como hei-de fritar línguas de curiosos. Levantava-se e como se nada fosse e juntando-se aos amigos pretendia ser tão-somente um deles, nada mais. Também ninguém estava obcecado por saber o que lhe ia na alma, por isso muitos nem notavam a interrogação que lhe marcava o olhar.
Chegava, por fim, aos lugares onde estavam os companheiros de escola. Lançava-lhes um olhar rápido acompanhado de um monossílabo e sentava-se num banco vazio a ver a paisagem desfilar como num filme visto através da janela do comboio. Parecia querer adormecer com a cabeça abanada pelo balancear repetitivo da carruagem, mas desperto como coruja ao anoitecer. A visão das pessoas que viajavam com ele e o ruído dos colegas tagarelando uns com os outros deixava-o, todas as manhãs, com aquele ar de quem preferia não ter acordado. Havia naquela visão algo que o afligia. Sentia-se desconforto no seu olhar, mas ninguém reparava, nem ousava perguntar porque encostava a face ao vidro gelado da janela e não olhava nem falava com ninguém? Não gostava de se sentir observado. Evitava atrair as atenções, muito menos tornar-se o centro delas. Sentia-se despido e vulnerável. Aqueles olhares liam-lhe a alma, desconfiava ele. Os seus olhos desvendavam o segredo que ele procurava esconder a sete chaves. Os olhos são transparentes e verdadeiros. Num olhar frontal nada se esconde; tudo se revela involuntariamente. Ele sabia que assim era quando fixava o seu olhar no olhar dos outros. Ficava a saber coisas que a boca sempre calaria. A boca mente os olhos não. Por isso não consentia que o olhassem olhos nos olhos com demora. Julgava assim manter unicamente seu o segredo que o olhar franqueava.
A vida, comparava a um rio que nasce fio de água, fraco, sem passado e começa a correr montanha abaixo escolhendo o percurso mais fácil. Torna-se riacho e contorna os rochedos, corre veloz em direcção ao vale e já ribeiro galga obstáculos, estende-se, procura território mais dócil, cai em cascata, mas continua a fortalecer-se e chega ao vale já rio, poderoso, forte e até violento. Reforça-se com a água que chega das margens, engrossa absorvendo os afluentes. Já é lençol de água navegável e manso, mas os obstáculos não o assustam e escolhe com cuidado o caminho que o leva ao mar. Cresce e corre sem pressa, irriga pastagens, alimenta animais, dá de beber às árvores. É um rio respeitado e impressionante. É fonte de vida. Cumpre o seu destino no caminho até à foz.
A vida de um homem é assim: surge no mundo frágil, dependente, insegura e começa a caminhada pelo tempo enquanto o seu caudal engrossa enriquecido pela experiência e pela aprendizagem, ultrapassa imprevistos primeiro simples, depois mais complexos e contornando e escolhendo o seu caminho cumpre o seu destino e chega à foz: vida repleta de experiências, exuberante de sabedoria com o fulgor de quem alimentou outras vidas, deu de beber a outros destinos e alterou de alguma forma a existência aqueles que com ele se cruzaram.
Mas nem todos os rios chegam à foz e nem todas as vidas cumprem o seu destino. Há muitos rios que chegam ao vale cheios de pujança, mas o calor do sol, a falta de chuva ou montanhas intransponíveis, impedem que sigam o seu percurso e ali morrem. E assim um rio, manancial de vida, é parado na sua corrida em direcção à foz e transforma-se num lago, ou pior, num pântano ou apenas num charco moribundo sem força para prosseguir e desbravar territórios até chegar ao oceano.
Antonino sentia-se ribeiro prestes a ser rio; já tinha pulado cascatas, contornado montanhas, engolido rochas e agora que o seu caudal engrossava e ia estender-se pelo vale um obstáculo medonho confrontava-o e parecia incontornável. Tinha ultrapassado sem dificuldade as primeiras ciladas que a vida lhe tinha montado. Tinha resistido a perdas e contornado montanhas, saltado abismos, ainda que com dificuldade, mas agora tinha pela frente o desafio da sua vida, pensava ele. Temia apavorado que a sua vida deviesse uma poça lamacenta, um pântano, um charco a secar ao sol, um riacho engolido pela areia: impotente, moribundo, sem futuro...
Convivia diariamente com um temor morno e suavemente triturador, que em momentos críticos devinha quase pânico. A cilada do destino estava montada e podia ser-lhe fatal.
O dia ia alongar-se até às dez da noite. O silvo longo do comboio ao avistar a estação era o aviso. Todos se dirigiam para a última porta enquanto a fricção das rodas nos carris afligiam os tímpanos num guincho de dor que distorcia o aço sob o peso daquela máquina medonha e desconfortável. Saíam todos do comboio em correria. Os mais afoitos saltavam ainda com ele em andamento e lançavam-se precipitados, como rebanho de cabras que viu erva tenra, em direcção ao portão da escola. Estava quase a soar o segundo toque que delimitava o prazo aceitável para a turma entrar na sala de aula. Se fosse pontual, o comboio chegava à estação no minuto limite para se entrar na aula sem o professor fazer cara feia.
As aulas decorriam com os imprevistos e atropelos habituais. Era uma turma de repetentes. Alguns muito repetentes! Vários professores, pouco mais velhos que os alunos, temiam os elementos que faziam das aulas um compasso de espera na vida até que os pais perdessem a paciência e decidissem que era hora de começarem a ganhar a vida. Homens feitos à porta da maioridade, mais motivados para as conquistas amorosas do que para as delícias do conhecimento que pareciam não servir para nada.«- Para que me aproveita saber calcular a raiz quadrada? E a tabela periódica o que vou fazer com ela quando içar a rede de pesca no barco do meu pai?»
Faltava-se muito às aulas. Eram um sacrifício para muitos. Provocava-se os professores com comportamentos infantis para receber o prémio de verdadeiro herói da turma que era atribuído àquele que mais vezes fosse convidado pelo professor a sair da sala.
No intervalo das 9.20, Antonino dirigia-se ao território da tribo, da sua tribo. Desde o ano anterior tinham montado a tenda e ali acampavam nos intervalos. Lá estava o Pink Floyd, e os amigos, as namoradas planeando o dia. Faziam o ponto da situação: que fazer com o furo das 11:00? Quem podia ir lá abaixo antes do almoço? A que horas se almoça e onde? Eram os dez minutos necessários para fazer a avaliação dos pendentes do dia anterior - qual reunião de trabalho!
«- Já fulano fez as pazes com a namorada ou acabaram? O encontro de ontem há noite correu bem ou ela não apareceu? O filme foi bom? Vale a pena ir ver?»
Oferecia-se o primeiro beijo do dia às namoradas para comprovar que estava tudo bem e voltavam para a segunda aula. O dia decorria sem sobressaltos, não havia furos, os professores tinham vindo todos. Santoro lá estava no cantinho, com os amigos que curtiam com as namoradas. Ele não era tão afoito. Não se enroscava com a sua. Era tímido! Gostava de ter namorada como os outros. Fazia-lhe bem ao ego. Tornava mais seguro o seu dia a dia. Bastava-lhe saber que ela estava lá. O título era suficiente: o namorado da Ana. Quando ouvia alguém dizer isto inchava disfarçadamente de orgulho. Nada, mas mesmo nada o impelia a tocá-la a beijá-la, até mesmo, ficar próximo dela não era uma necessidade. Dedicava-se mais à conversa com os rapazes. Trauteavam «Another brick in the wall», com uma satisfação de desafio à escola e aos professores. Comentava-se o boicote aos Jogos Olímpicos de Moscovo que assim iam ser uma porcaria sem interesse e o Benfica e o Sporting e o fim-de-semana na ilha da Fuzeta. Apreciava as brincadeiras juvenis de medir forças, gostava de entrar nas suas aldrabices de conquistas e descobertas sexuais, gostava de estar com os mais velhos, raposinhos ainda ingénuos, mas mais experimentados nas matreirices da juventude.
As aulas da manhã terminavam para alguns, mas o almoço estava combinado só para mais tarde: quando terminasse, para a outra metade da tribo, a última aula da manhã. Aquela hora era normalmente sua. Antonino, enquanto os colegas aproveitavam para jogar à bola, esgueirava-se meditativo através do portão e tomava o caminho da avenida distraindo-se com a gente que subia e descia a avenida apressada. Captava o movimento dos corpos espreitando as suas formas que só o facto de estar sozinho lho permitia. O seu olhar sem ele perceber procurava o olhar dos outros. Era nesta descoberta dos olhares que descobria mistérios nos outros que ele nem sabia que existiam. Porquê uns desviavam o olhar e outros o fixavam no seu? Será que havia segredo no olhar daqueles que recusavam o seu olhar? Noutros aumentava-lhes o brilho. Via alegria e tristeza, mágoa e força nos olhos que mirava. Por vezes sabia que se olhasse para trás os olhos que tinha confrontado estariam cravados em si. Raramente se enganava e sorria imaginando pensamentos inconfessáveis. Havia olhares que lhe o intimidavam outros faziam-no sentir uma paz inexplicável. Nesta brincadeira de olhar olhos nos olhos descobria olhares surpreendentes. Era um jogo. Descobria no olhar de desconhecidos sentimentos que conhecia. Gozava no silêncio da sua caminhada, avenida abaixo, o prazer de penetrar brevemente nos seus segredos. Descobria pacientemente com o passar do tempo alguns silêncios do comportamento humano neste passatempo nada inocente em que o olhar era a arma afiada para o efeito. Mas não era só o olhar dos outros que lhe merecia atenção.O rosto e os corpos que consigo se cruzavam mereciam o atrevimento de um olhar disfarçado. Tinha prazer na visão do corpo masculino. Curioso, suspeitava que o fazia pelo gosto de antecipar a visão do seu que ainda não tinha atingido a maturidade. A barba, os pêlos, a definição muscular, o vigor dos corpos robustos eram uma tentação irreprimível. As calças justas nas ancas e nas coxas e à boca-de-sino nas pernas, deixando imaginar tudo o que guardavam, o traseiro perfeito de redondo! Achava aquelas formas magníficas! Será que um dia o seu corpo iria ser assim? Tinha curiosidade em saber como o seu corpo iria ficar mais cedo ou mais tarde, não havia ali nenhum desejo proibido - justificava-se. Só com o passar do tempo foi tomando consciência de que se enganava a si mesmo. Mas durante muito tempo reprimiu a tese que se veio a revelar correcta. Afinal tinha uma namorada como todos os outros rapazes e gostava muito dela! No entanto os seus olhos agora tristes e mortiços diziam-lhe que não era bem assim. O prazer que ele sentia ao olhar para um homem não podia ser normal. Quase de certeza os seus amigos não o faziam. Eles olhavam para as miúdas com os mesmos olhos que ele olhava para os rapazes. A virilidade atraía-o. Sofria em silêncio e não contava a ninguém aquela tentação.
Apenas Deus ouvia as suas preces para que aquela tentação passasse - assim encarava, ele, aquela forte atracção pelo corpo masculino. Tinha que passar. Fazia promessas. Se Deus o ajudasse a vencer aquela tentação diabólica ele faria tudo o que Ele lhe pedisse. Antonino era um dos seus filhos e se a Bíblia é a palavra de Deus então tudo é possível àqueles que amam a Deus e ele amava a Deus. Disso não tinha dúvida. Isto era apenas uma provação que iria ultrapassar. Porque todas as coisas contribuem para o bem daqueles que amam a Deus... Estes versículos bíblicos eram uma constante no seu pensamento. Nestes momentos Antonino fechava-se e nem o melhor amigo lhe arrancava uma palavra sobre o seu estado de alma.
Com o passar do tempo começava a desconfiar que o criador não estava muito preocupado com o seu problema. Sentia-se sozinho numa cruzada contra si próprio, contra o seu destino. Não tinha escolhido ser assim. Era castigo divino? Porquê? Não podia ser castigo. Não tinha feito nada que o justificasse. Era um crente devoto! Quereria Deus que ele fosse assim? Se sim, então era natural o que sentia? Não se escolhia ser assim por isso Deus não podia reprovar, apenas as pessoas em ignorância da vontade divina o faziam. Todos tinham direito a ser felizes e só se pode ser feliz vivendo de acordo com aquilo que se é. Deus é amor, logo ama todos os que foram criados à sua imagem e semelhança. Estas reflexões algo atabalhoadas devolviam uma certa calma ao seu dia a dia.
Dúvidas e mais dúvidas, insegurança e medo de que alguém descobrisse o que lhe ia na alma eram a outra face da moeda. Havia na vila, onde morava, três jovens famosos pela sua originalidade. Conhecidos pela sua forma de estar, caminhavam, falavam e riam com sensibilidade feminina. Gesticulavam enquanto conversavam melhor que as alcoviteiras quando se encontravam na mercearia do Sr. Manel. Contavam-se sobre as suas vidas estórias mais divertidas do que anedotas. Caricaturavam os seus trejeitos! Os vizinhos adoravam a sua aparição. Era divertimento garantido. A sua chegada transformava o lugar num palco onde um «palhaço» improvisado, inadvertidamente a todos fazia rir e sorrir. Eram uns queridos!? Idos, os sorrisos cúmplices de chacota entretinham a vizinhança ainda por algum tempo. Ausentes nem gente eram. Nem homens nem mulheres: eram uns perdidos, uns desgraçados. Eram gente aparte: não tinham amigos; nenhum homem queria ser visto a seu lado. A solidão raspava-lhes a existência. Uns infelizes! – Sentenciava quem com eles se cruzava.
Será que ele ia ser um deles? Iria com o passar do tempo transformar-se num daqueles seres que não são ninguém? Desconfiava do futuro. O pânico da transformação fechava-o em casa. Preferia estar só. Assim ninguém se aperceberia no que se estava a tornar, pensava ele. Um dia ia dar consigo comportando-se daquela forma suspeita e seria ele alvo dos risinhos cínicos dos vizinhos. Era assim, muito metido consigo próprio, muito hermético. Era um caseiro, dizia-lhe a mãe, quase desesperada, empurrando-o para fora de casa. «- Vai procurar os teus amigos, vai conviver, fazer qualquer coisa, mas vai! Ela estava inteirada que havia algo de estranho naquele comportamento. Um miúdo de 15 anos não se fecha em casa sozinho a ler ou em frente à televisão! Não investigava mais, contentava-se em enxotá-lo para o mundo. Só sentia que não era normal. Era tímido. Que fazer?
Ana era uma menina quieta e dócil, de ancas roliças, vistosa quanto baste e sem grande jeito para a tagarelice. Gostava do Antonino porque gostava da forma atenciosa como a ouvia, do tempero doce com que lhe falava e da ternura do seu olhos quando olhavam nos seus. Gostava, acima de tudo de ter namorado. A relação desde o princípio começara frouxa, sem alma, sem paixão. A relação não tinha fôlego, mas nem um nem outro pareciam incomodados com o facto. Aquilo parecia ter-se iniciado apenas porque eram, do grupo, os únicos que não tinham alguém. Enquanto os outros casais davam os primeiros passos na descoberta do erotismo e da sensualidade dos corpos, eles conversavam e distraíam-se um com o outro. Sem se aperceberem como, estavam de mãos dadas e os outros deram o empurrão para que não fossem a excepção. E assim foi: sem vontade própria, sem razão que o justificasse iniciaram uma relação que convinha a ambos. Sentiam-se integrados, eram como os outros, não se sentiam deslocados o que no início da adolescência fazia toda a diferença. Mas não namoravam afincadamente como os demais.
Antonino tinha tido uma infância razoavelmente feliz. Nos anos setenta viver no campo junto ao mar era um privilégio. A liberdade de pardalitos voando em bandos era a melhor comparação para o grupo de putos que jogavam à bola ou ao mata no cruzamento dos caminhos ou corriam para o monte da torre, que não era de romanos nem de mouros como se dizia no sítio, mas era um óptimo lugar de brincadeira. Imaginavam túneis de Mouros a ligar a Torre ao mar para uma fuga apressada dos inimigos. Chegaram a perder tardes a escavar à volta de um rochedo onde só podia ser a saída, tapada para o inimigo não descobrir. Por perto havia um pinheiro bravo onde tinha sido laçada uma corda que servia de liana selvagem e os tornava em tarzans arrojados, balançando de um lado para o outro como uma família de chimpanzés brincalhões que não avaliam os riscos da brincadeira. Um dia o Chico tombou da corda e deu entrada no hospital com um pé fracturado. Só nessa data a brincadeira foi cortada à faca. Alguns meses depois voltaram à brincadeira, mas não com o mesmo entusiasmo.
Descobriram, entretanto, que o reservatório de água que alimentava as salinas era uma excelente piscina. Logo que os dias aqueciam um pouco mais, o ponto de encontro era o «Tejo», junto ao Canto das Lanchas, em plena Ria Formosa. De calções ou nus para as mães não descobrirem que tinham tomado banho de água salgada nadavam, mergulhavam, empurravam-se uns aos outros imunes à água morna parada, aquecida pelos raios de sol de Verão num Algarve sem receios nem perigos.De volta a casa a fome apertava e os frutos ainda verdes nos pomares dos vizinhos eram assaltados por um bando de crianças esfomeadas e naturalmente felizes. Em casa, arquitectava com o Lego, com a irmã às casinhas, às mercearias, à macaca e até ao elástico. Cresceu inocente num lugar quase ideal onde tudo era naturalmente bom e saudável.
Ainda antes de entrar para a primária uma menina mais velha, com quem brincava às mamãs e aos papás, tinha-lhe explicado sem palavras, atrás de casa como se fazem os bébés. A história da cegonha tinha deixado de fazer sentido para ele aos cinco anos. Mais vezes brincaram aos papás e às mamãs. Mas eram os contactos mais íntimos com os colegas que mais lhe agradavam. Não gostava que lhe atribuíssem namoradas. A partir dos 13 anos começou a aperceber-se que os namoricos que arranjava eram apenas platónicos, não sentia atracção pelo corpo feminino, gostava apenas de conversar e desfrutar da sua companhia. Por outro lado tinha começado a olhar o corpo masculino com outros olhos. Desejava a sua proximidade, observar o seu vigor, inspirar o seu odor... sentir o seu calor sem jamais se atrever.
Não entendia como tinha ali chegado. Simplesmente estava envolvido numa conspiração em que sem escolher estava do lado errado da adolescência. O dilema mortificava-o diariamente. Parecia ter uma vida simples até ao momento que via o primeiro homem do dia e se produzia um clic no seu cérebro que lhe dizia que não devia prosseguir naquele comportamentos.
Mortificava-o, não conseguir dominar os seus instintos. Existia um outro dentro de si que lhe aflorava à pele. Agora com a testosterona à solta na corrente sanguínea não conseguia reprimir esse outro que queria provar o fruto proibido. Antonino era uma capa ou antes uma máscara de alguém que já existia dentro de si sem ser desejado e que conduzia contra sua vontade os seus olhos e os seus pensamentos. Temia que esse outro ganhasse cada vez mais poder e se tornasse impossível disfarça-lo.Forçava o pensamento no corpo feminino. Chegou a comprar revistas para o ajudar. Quanto mais tentava esquecer, mais se lembrava. E quanto mais pensava na beleza da mulher e em toda a sua sensualidade, mais ansiava os lábios sensuais dos seus colegas e mais admirava o erotismo do tronco masculino. O fim das aulas de Educação Física era o melhor e o pior momento da semana. Poder sentir o corpo transpirado dos companheiros e estar próximo deles, nos balneários, quase tocando-lhes, era uma explosão de sentimentos camuflados que torturavam os seus sentidos sem dó nem piedade.
A seguir mortificava-se por ter cedido à tentação e quase chorava de ódio por não ser forte e resistir. Tinha vergonha do que fazia. Deus não o iria ajudar quem não se ajudava. E no entanto Deus não reagia: não o castigava nem o auxiliava.
Os poemas de Torga aleijavam-lhe a fé. Lia-o e lia Régio com a cumplicidade de quem procura consolo para as suas dúvidas nos poderes divinos. Tinha companhia ao cavalgar as hesitações que pressentia na actuação celestial. Ficava desesperado. Apetecia-lhe desaparecer para sempre. Morrer.
Não tinha a quem contar o que sentia. Orava. Pleno de fé reconciliava-se com Deus e voltava a acreditar que estava apenas a ver provada a sua fé. Era passageiro. Deus fazia milagres. E ele tinha muita fé, mesmo.
A tarde aproximava-se do fim. As aulas terminavam. O comboio, mais uma vez, não esperava. Todos corriam para casa. Só Antonino não. A melhor e a pior parte do dia ainda estava para acontecer!
O jovem Santoro tinha uma irmã entusiasta da prática desportiva. Era mais nova cinco anos. A mãe só permitia que ela praticasse Ginástica Desportiva porque o irmão podia acompanhá-la no regresso a casa noite já avançada. A princípio o compromisso poderia parecer difícil de assumir para um rapaz de 15 anos, mas rapidamente ele se apercebeu que aquelas duas horas eram as mais excitantes do dia. Não fazia programa com os colegas depois das aulas, minguava-lhe o tempo para estudar, não via televisão, mas não importava.
A classe da irmã era mista. Fez amizade com os colegas da irmã. Os ginastas mais velhos eram muito agradáveis à vista. Silvestre Boavida era um ginasta bem definido, relativamente alto, olhos claros e ombros largos, mais maduro. Divertido e meigo, vestia t-shirt justa e calção branco que lhe contornava com precisão as formas. Tinha um corpo irresistível, uma face adulta, uns olhos alegres e uma presença desenvolta. Poucos dias depois da sua aparição nos treinos, Antonino estava completamente apaixonado. Ansiava, dorido de saudade, os dias de treino. Os fins-de-semana eram uma eternidade. A Segunda-Feira um banho de mar num dia abrasador de Verão. O final da tarde um tormento para os sentidos.No fim do treino acompanhava os ginastas ao balneário e saciava os sentidos. Observar o seu corpo transpirado, depois cheio de espuma e molhado sob o chuveiro, escorrendo água envolto numa toalha sorrindo. Era o momento alto do dia. Tinha valido a pena esperar. O seu peito queimava na presença de Silvestre. Uma sensação de bem-estar dominava-o e esquecia todos os medos. O cheiro de Silvestre fazia dele um vulcão pronto a entrar em erupção. Por vezes pensava-se incapaz de dominar os seus instintos, mas tudo esmorecia logo a seguir num até amanhã indiferente e frio que se repetia dia após dia. Amava-o em segredo. Fazia com ele amor todas as noites, sozinho.
O malvado Cupido zombava dele. Enchera-lhe o peito de paixão, de vontade de estar perto, de lhe aspirar o odor, de se encandear com os seus olhos, de seguir os seus movimentos. A dopamina encharcava-lhe o cérebro e quase se descontrolava na presença de Silvestre. A dor era imensa. Quase ia à loucura! Só o pavor de ser descoberto lhe mantinha o coração algemado. Só a vergonha de estar apaixonado por outro homem o calava. E Cupido ria, ria, escarnecendo deste amor proibido, falhado e amaldiçoado pelo próprio Santorino.
Não tinha escolhido amar assim, mas era assim que sentia totalmente feliz. Vivia aquele momento único com a mansidão de quem se resigna à ditadura dos instintos básicos. Em casa, entre os lençóis, expulsava os desejos demoníacos num ritmo compassado que aumentava de intensidade e terminava numa erupção trepidante de energia que finalmente lhe dava a paz e a serenidade para adormecer e recuperar do turbilhão de conflitos que povoam a sua vida. Depois daquele acto de exorcismo em que ficcionava os dois corpos amando-se sem remorso, era, por alguns minutos, feliz
!Na igreja, em tempos não muito distantes, assistira ao acolhimento de alguém que como ele não sabia lidar com aqueles sentimentos que nutria por pessoas do mesmo sexo. O pastor juntou mais dois crentes e orou sobre a sua cabeça pedindo a Deus que operasse o milagre na vida daquele homem. Ele era um pecador, mas se tivesse fé poderia ser curado. A fé faria o milagre! Deus amava-o apesar dos seus pecados. Depois de algum tempo aquele homem não voltou a comparecer na igreja. Ficou sem saber se a oração havia resultado positivamente.
O pecado de Antonino era o mesmo, mas o milagre tinha que ficar só entre ele e Deus. Ninguém mais iria saber. Até o acalmar solitariamente a pulsão sexual, que crescia naturalmente dentro de si, ficaria só entre ele e Deus. O corpo resolvia o problema durante o sono. Os jovens crentes não deviam ajudar. Era pecado - ensinava o Pastor.
Ele pecava duplamente. Sofria duplamente. Arrependia-se duplamente. Antes de adormecer sentia-se outra vez dominar pelo remorso de ter fraquejado. Pensava em Ana. Queria muito vê-la. Queria desejá-la como desejava Silvestre! Queria ser capaz de amá-la daquela forma arrebatada também.
Seria tão fácil se a pudesse amar assim.Prestes a adormecer, desiludido consigo, saltava para o colo de Jesus como gato assustado pelo cão da vizinha e cravava as unhas nas veste celestiais para não cair e orava a Deus que lhe perdoasse a sua fraqueza e lhe desse forças para resistir às investidas de Satanás. Hoje tinha sido fraco, mas não voltava a acontecer.
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«Dá-me fé para acreditar que o milagre vai acontecer. Tu tudo podes e tudo sabes, por isso sabes que eu quero ser como tu queres que eu seja. Não ponhas mais à prova o teu filho, porque eu sou fraco. Toma a minha vida nas tuas mãos e faz dela o que quiseres». Nesta oração, sentado na cama, terminava em nome de Jesus Cristo e adormecia convencido que ao tocar do despertador às 7:15 da manhã o milagre tinha acontecido, as suas preces ouvidas e o seu desejo realizado. E assim era: o milagre acontecia todas as manhãs. Até que ao chegar ao apeadeiro dava consigo a apreciar o rosto dos amigos e achando que eram belos. O milagre desfazia-se então em realidade e o sofrimento irrompia com a cabeça encostada ao vidro da janela, vendo a paisagem passar, sem vontade de falar com ninguém, por vezes com os olhos rasos de água e a ânsia que a noite chegasse para voltar a fazer as pazes com Deus e acreditar que não viria a ser rio transformado em charco de água estagnada sem forças para continuar, nem se viria a transformar-se num infeliz, solitário e caricato, sem amor nem amigos, sem vida nem futuro...
Enquanto Deus não se decidia a fazer o milagre Antonino Santoro suportou dúvidas e medos, viveu entre a tentação e a fé e fez resistir a carne, mas não o pensamento. Receou o destino e remoeu na solidão do silêncio o porquê de ser diferente. Quando depois do pedido repetido a Deus adormecia os sonhos continuavam a luta diurna. Sem saber porquê sonhava repetidas vezes que podia voar. Planava sobre os campos verdes sem vertigens nem medo de cair. Subia à copa das árvores como Ave-do-paraíso deliciando-se com os super poderes que o sonho lhe conferia e gozava o prazer da ausência gravidade. Mas logo o sonho se turvava. Sentia que era perseguido e em aflição verificava um homem morcego voava colado a si procurando agarrá-lo, cortar-lhe o voo e dominar-lhe os movimentos. Perseguido, prestes a cair do céu, já não anjo, mas Antonino pesado, acordava encharcado e apavorado. O sonho delicioso tornava-se pesadelo e tardava em adormecer outra vez.
Tinha fé que um dia Deus viria em seu auxílio e o pesadelo chegaria ao fim, mas Deus tardava...
posted by Mexilhão
8:13 PM