25 DE ABRIL
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Onde estava eu no dia 25 de Abril de 1974?
Dormia um sono inocente e profundo como dormem as crianças aos 9 anos de idade que não passam frio, nem fome, nem tem medo do papão que está em cima do telhado. Não ouvi o «Depois do Adeus», não tinha o rádio sintonizado no Rádio Clube Português, só soube que existia uma Grândola que era vila morena mais tarde.
Acordei no dia 25 de Abril desse ano e, certamente, bebi o meu leite com torradas antes de fazer a pé os três quilómetros que me separavam da escola primária de Bias do Sul, Moncarapacho, Olhão. Só ao entrar na sala de aula me apercebi que dia estranho era aquele. Só mais tarde me dei conta que não voltaria a ter aulas num dia 25 do mês dos cravos.
Entrei na sala de aula e suspeitei que algo de grave tinha acontecido. A fotografia daquele senhor que estava entre a cruz e o quadro preto, onde a professora nos humilhava quase diariamente demonstrando à turma a nossa ignorância aparente, estava deposto sobre o estrado. A senhora professora lacrimejava como se uma desgraça tivesse acontecido. Será que o retrato caiu lá de cima e a atingiu? Foi um tremor de terra? Ninguém explicava e a pequenada não percebia porque não começava a aula se já passava da hora!
- Vão brincar, vão para o recreio. O que quer que tivesse a provocar aquela confusão, não estava a correr mal para os nossos interesses. Eu talvez nem tivesse feito os trabalhos de casa. Livrava-me de escutar o ralhete da professora e ainda tinha prémio: brincadeira a dobrar. A manhã foi de brincadeira sobressaltada porque havia qualquer coisa no ar que tinha provocado aquela alteração na rotina da escola. Pouco antes da hora de almoço fomos dispensados. - Podem voltar para casa. Hoje não há escola. Boa, boa! Que não havia aulas já tínhamos percebido, mas porquê ninguém parecia interessado em esclarecer. Aquela desconsideração para com os pirralhos era típica.
Só de volta a casa comecei a perceber o que estava a acontecer. A televisão não transmitia desenhos animados. Só uma música persistente e aborrecida, sempre igual. Uns senhores com fardas da tropa vinham dizer, de tempos a tempos, que a população se devia manter calma. Mas lá no sítio estava tudo calmo!? Onde estava a revolução que eu queria ver.
Os acontecimentos daquele dia e do que se lhe seguiu provocou o repentino aumento do vocabulário e de conceitos que até ali nunca tinha escutado ninguém falar: revolução, ditadura, fascismo, PIDE, democracia, liberdade, comunismo, socialismo, eleições, partidos políticos, e muitas outras palavras que passaram a fazer parte das conversas dos portugueses e, o melhor de tudo, feitas em alta voz, sem medo de ser escutados.
O que se seguiu ao 25 de Abril de 74 teve uma profunda influência no que viriam a ser os meus interesses futuros. Como exemplo só vos digo que, com 10 anos de idade, acompanhei o escrutínio das primeiras
eleições para a assembleia constitucional de 75 até às cinco da manhã, quando a minha mãe se apercebeu que eu não me tinha deitado e apagando a televisão correu comigo para a cama.

No dia 25 de Abril eu estava, criança, ao lado dos que sonhavam um futuro limpo, sem sombra de fome, sem vestigios de guerra, mas fecundo de liberdade. Estava, sem o saber ainda, ao lado dos que desistiram de esperar pelos sonhos sempre adiados e pelo resgate do Portugal anacrónico estagnado numa ditadura podre a pedir que a jogassem para o caixote do lixo do passado.
Hoje considero que no geral e no essencial a revolução dos cravos atingiu os seus objectivos. No entanto há pormenores que falharam ou continuam por concretizar, mas como o processo iniciado em 74 não parou, está na mão de todos nós realizar em pleno o sonho democrático que moveu os capitães de Abril.