
A frase não é minha, é de uma colega que depois de satisfazer uma das suas necessidades básicas que se resumem a comer, dormir, fumar e tomar café afirma que já se sente mais humana. Eu posso, sem pagar direitos de autor, repetir a mesma frase: «hoje já me sinto mais humano».
Na noite de Quinta-feira teve lugar o famoso «Jantar das Guias» na praia do Caniço, na Prainha, Alvor. Como já descrevi no ano passado «O Caniço» é um restaurante privilegiado pela sua localização natural: incrustado na falésia, sobranceira a uma pequena praia resguardada pelas famosas formações rochosas que fazem a fama das praias do barlavento algarvio. Desce-se para a praia por um elevador mecânico escavado na rocha e é obrigatória a passagem pelo espaço do bar-restaurante. Ao atingir a explanada, sem que para isso tenhamos de pagar um cêntimo, os olhos confrontam-se com o mar azul a confundir-se com o céu, rodeado de rochas que parecem ter sido esculpidas e colocadas nos lugares certos para o artista passar para a tela uma pintura naturalista de um dos recantos do paraíso.
O tempo melhorou ao longo da semana a tempo de nos presentear com uma noite relativamente agradável. Em termos de animação e de ambiente a festa ficou muito atrás do ocorrido no ano transacto. Os dias que correm são mais estranhos e difíceis, profissionalmente falando, do que eram há 365 dias. As baixas, resultantes do descontentamento e símbolos de protesto estavam à vista de quem tinha olhos para ver. Muito menos participantes. As ausências foram atribuídas à instabilidade meteorológica, mas todos sabemos que a instabilidade causadora da falta de participantes é outra.
Pessoalmente, não podia escapar a um tête à tête com o meu novo patrão, sim porque agora tenho um patrão, já não um accionista em Wolfsburg e uma sede em Villepinte. Só nos tínhamos encontrado uma vez e trocado alguns e-mails. Era tempo de de lhe dar o prazer de conversar comigo. De caminho para o bar encontrei-o com um copo de tinto na mão e foi aí que trocamos cumprimentos de circunstância. Depois entramos de cabeça no trabalho. Uns elogios aqui (que só lhe ficou bem), um comentário ali, o homem começou a falar de expectativas, de variáveis macro-económicas, de dificuldades operacionais. Vi que quis aferir do meu nível de entendimento sobre estas questões que influenciam a nossa vida profissional e a vida do nosso porta-moedas, mas que não têm a mesma piada que a frescura do gelo picado embebido em cachaça, realçando a acidez citrina da lima adocicada por duas colheres de açúcar que eu ia buscar para me ajudar a entrar no espírito da coisa.
Começou: ele puxou dos seus canudos em Gestão de Empresas, e Direito e de um outro qualquer que faz com que o tratemos por doutor, mas ninguém lhe disse que eu tenho dois anos de Teologia e mestrado em sexo com protecção de látex e um doutoramento em sexo oral. Puxei pelos meus galões e de uma análise rápida sobre a influência do estado do tempo na nossa facturação diária, passei para uma análise macro-económica que não podia deixar de ter em conta a actual crise provocada pela especulação sobre o preço do petróleo e suas repercussões no aumento do preço dos alimentos acentuando o pessimismo sobre as expectativas de evolução da economia mundial. Espetei-lhe com as consequências do aumento da inflação e dos juros na retracção do consumo que influencia o comportamento dos turistas, em férias, e para rematar puxei para a contenda as estatísticas da entrada de turistas no aeroporto de Faro para justificar a diminuição da actividade da empresa nos primeiros meses do ano. Para terminar referi a alteração dos comportamentos quanto à compra de férias que privilegia os pacotes de viagem, alojamento e carro low cost e tende a provocar uma concentração de actividade no aeroporto de Faro em detrimento da actividade das estações. Em resumo disse-lhe que as pessoas não são parvas e a agressividade dos brokers e a internet dá-lhes a possibilidade de fazer férias a metade do preço e quem se fode é quem tem de alugar carros em Armação de Pera ao dobro do preço disponível no mercado de origem. Não lhe disse nada que ele não soubesse, é verdade, mas ele é que não esperava que eu, sem ter um só canudo o acompanhasse no nível intelectual da conversa que me propôs. Em resumo concordamos que temos que nos esforçar por enganar os pacóvios que não sabem que uma reserva on line no site da empresa ou de um broker qualquer custa muito mais barato do que nós tentamos alugar ao balcão e se a coisa não funcionar então há que descobrir alternativas na forma como desenvolvemos o nosso trabalho. O mercado está em mutação acelerada e se não nos adaptarmos a «morte» será tudo o que nos resta.
No fundo penso que não foi difícil impressioná-lo com a minha análise de mercado pois o homem já balançava, como cana de bambu ao vento, agarrado a um copo de vinho tinto que desconfio ser de uma qualidade muito superior aquele com que eu tinha acompanhado a minha refeição.
Transposto este encontro, que estava escrito no protocolo, era tempo de atacar os digestivos e tentar descobrir um finlandês que no ano passado me tinha tentado levar a conhecer as zonas mais recônditas da praia. Para minha frustração o rapaz não era a minha praia, estava podre de bêbado e eu ainda bastante sóbrio. Não o encontrei, mas se o tivesse encontrado, certamente voltaria a estar literalmente regado com o néctar dos deuses em que a camisa que envergava era um mapa-mundi desenhado artisticamente a nódoas de vinho tinto.
Depois da minha gaja ter dado à sola, fiquei acompanhado por três anim
ados jovens, todos nascidos quando eu já tinha deixado de ser teenager. Um deles estava em ponto de rebuçado e queria enfiar connosco no bar de streep local a todo o custo. Não conseguiu. Éramos três contra ele e acabamos numa discoteca a meio gás, na Praia da Rocha a ver o bambalear das ancas das mulheres que na pista desesperavam que alguém se atravesse a fazer-lhes companhia. O ritual do engate nestes lugares é mais que evidente. Porque será que me dá sempre vontade de rir quando se fala da promiscuidade homossexual por oposição ao comportamento heterossexual, como se para uns fosse um problema de pele e para outros de consciência?

A noite tinha sido óptima, mas era tempo de recolher. O cansaço era muito. A cabeça não perdoava os efeitos do álcool e a falta de descanso. Era a hora certa para abandonar a arena.
Ontem sentia-me um farrapo. Hoje «já me sinto mais humano».
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