
O nosso arquivo central, embora não tenhamos consciência disso, guarda todos os momentos que dão corpo à nossa experiência de vida. A maturidade que ostentamos é fruto do que aprendemos de tudo o que aprontamos, que vimos ou sofremos, numa palavra: experimentamos. Uma pequena percentagem do que guardamos na mente foi de tal maneira marcante que de tempos a tempo abrimos a gaveta e revivemos a delicia ou o horror por nós vivido. Porque só a recordação dos bons momentos potencia o prazer de viver é a eles que recorremos quando queremos acreditar que a felicidade existe. Não fosse o passado estar sempre presente, o presente, só por si, seria demasiado efémero para preencher as nossas vidas e a crença no futuro demasiado incerto para as alimentar. É o vivido que nos dá consistência e estabilidade. A ele recorremos como prova de que a vida vale a pena. Os outros, os maus momentos, estão lá também e vale sempre a pena lembrá-los, para que não se repitam.
As minhas férias de sonho estavam a acontecer. A subida do Nilo chegara ao fim. O barco-hotel estava ancorado no porto de Assuão. Ao longe o paredão enorme da barragem do maior rio africano parecia uma miragem. A descoberta da cidade, já noite escura, tinha sido um momento único no dia anterior. Um
Karkadé a fumegar e o odor a morango inalado de uma shisha azul ardósia suave, fora um momento único de convívio e de ligação à cultura árabe (experiências de turistas!). Os velhotes árabes, peritos no uso do
arguile , conversavam animadamente à nossa volta. O grupo de portugueses maravilhado pelo ambiente sentia que aquele era um mundo a que não pertenciam, mas onde se sentiam bem e estavam dispostos conhecer tão de perto quanto possível.
Ao pensar em trazer comigo algo palpável desse mundo desejava possuir a réplica de um obelisco. No comércio local, sem grande arte, confesso, regateei o preço tanto quanto pude. Quando os valores se encontraram tirei as libras do bolso e dei ao homem que me pareceu feliz com o negócio. Pouco depois o nosso guia confirmou que o homem tinha feito um bom negócio. Eu tinha pago o dobro do preço que ele aceitaria receber pelo pesado obelisco. E eu estava feliz por o ter adquirido por um terço do preço inicialmente pedido. Enfim: negócios das arábias. Ficamos ambos contentes com o desfecho da disputa.
Só mais tarde me apercebi que o negócio se tinha transformado num problema de vários quilos. A peça que em minha casa recorda os dias felizes nas margens do Nilo iria transformar-se, literalmente, num pesadelo até chegar a Portugal.
O último dia previa um passeio de faluca até à outra margem do rio. Um olhar passageiro à Ilha
Elefantina. Banho nas águas, não poluídas, do rio. Passeio de camelo até á aldeia núbia mais próxima. Visita à aldeia e a casa de uma família
núbia . Estávamos todos fascinados com os momentos que aquelas férias nos haviam proporcionado: absolutamente inesquecíveis.
A faluca navegava suavemente rio a cima junto aos rochedos. Na outra margem, no topo de uma elevação coberta de areia o
mausoléu de Agha Khan não passava despercebido. Ao chegar não resistimos a mergulhar nas águas mornas do rio, depois de alguém se certificar que por ali não moravam crocodilos.
No Egipto os vendedores de artesanato estão a cada esquina. Depois de um olhar apressado pelos objectos expostos era hora de subir dois a dois aos instáveis dorsos dos camelos pachorrentos que nos levariam junto à arriba até à aldeia mais próxima. Divertidos com as nossas figuras patetas montadas em camelos caminhando junto a um enorme declive(ainda se fossem burros!), uma boa dezena de crianças corriam e riam seguindo de perto a caravana. Gritavam, tentando convencer-nos a adquirir as pequenas peças de artesanato que vendiam. Era o seu contributo para a economia familiar.
Uma criança de pele mais escura que as outras, elegante, como todas, parcamente vestida, descalça, mas com uns olhos vivos e brilhantes enfeitados por um sorriso aberto chegou-se a mim tentando vender-me uma pequena boneca nubia. Não queria. Ou melhor, não queria ficar com as mãos ocupadas até ao fim do passeio que só estava a começar. Ele insistia. Não sei como, mas falava uma língua que eu entendia como se fosse a minha: um a mistura de francês, com espanhol, inglês e gestual: compreensível! Dizia ele que precisava que eu comprasse a boneca para ele ir à escola. Recusei, mais uma vez, mas prometi que mais tarde, no fim do passeio, compraria, imaginando que ele não estaria por perto nessa hora. Já balançava como num carrossel, ao ritmo dos passos longos e pausados do desajeitado animal, quando ele desistindo quis saber o meu nome. Sorri e revelei-lhe o meu nome de baptismo.
(Continua)