A estrada nacional 125 que liga o Algarve de lés a lés é hoje uma «avenida» semi-urbana, povoada de rotundas, semáforos, passadeiras para peões, limites de velocidade entre outros limites à condução. Há não muito tempo esta era uma das estradas mais mortíferas da Europa e a sua aura de via altamente perigosa não se extinguiu.
Esta Terça-feira esteve razoavelmente amena quando comparada com a tormenta dos fim-de-semana. Quase não choveu. O sol apareceu repetidamente e a temperatura subiu. Depois do jantar a três em em Tavira, regressei a casa pela EN 125. A noite trouxe uns chuviscos breves suficientes para molhar o pavimento. Cheguei ao troço entre Alfandanga e Quatrim. Estes quilómetros de estrada fazem parte no meu «quintal» de infância. Desde tenra idade que conheço cada metro deste pedaço de alcatrão. Percorri-a vezes sem conta de bicicleta a pedal ou mesmo a pé quando o tráfego era muito menor. Atravessei o asfalto milhentas vezes durante os 4 anos que frequentei a Escola Primária de Bias. Vivendo eu junto ao mar no extremo sul de Portugal era travessia obrigatória. Na direcção oposta de minha casa até ao fim do território não distavam mais de 500 metros e depois era a Ria Formosa e o Atlântico: o fim do mundo.
Por vezes, ao passar naquele preciso metro de estrada onde o bando de crianças, de que eu fazia parte, vindo do sul, atravessava diariamente lembro a Helena. A Helena era um desses pardalitos alegres que fazia todos os dias três quilómetros a pé, brincando e saltando ou simplesmente caminhando apressadamente para ir aprender a ler e a escrever. Até que um dia, já com os trabalhos de casa para o dia seguinte apontados no caderno, se preparava para atravessar mais uma vez a estreita faixa de asfalto. Foi nentão que um automóvel a colheu brutalmente, interrompendo a sua curta vida, enlutando a família e roubando-nos, ali, diante dos nossos olhos a colega de escola, a amiguinha, a menina bonita que nunca chegou a aprender a ler e a escrever. Fomos todos num autocarro ao funeral e os nossos pais nunca mais nos mandaram para a escola sem pensarem na Helena que um dia foi e não voltou nunca mais.
Aquela zona está hoje povoada por sinais luminosos de controlo de velocidade. Desde a subida de Alfandanga, junto à estrada que leva à Fuzeta, até ao sítio dos Cavacos encontram-se cinco semáforos. Habituei-me a fazer esse troço de forma a não avermelhar nenhum deles, não que seja um condutor irrepreensível, mas porque sei do perigo que espreita naquelas curvas rodeadas de casas onde moram muitas Helenas em potencial. E hoje não foi excepção. Ao segundo controlo vinha decidido acumprir o limite de velocidade, quando uma outra viatura se aproximou em velocidade excessiva ignorando semáforo. Não fora eu o culpado, mas aguardei que voltasse a verde. Atrás de mim senti que o outro condutor se impacientava. Avancei quando o verde voltou e rapidamente fui ultrapassado. O terceiro sinal luminoso distava apenas uns curtos 500 metros e ia ficar vermelho. O individuo acelerou. O semáforo passou a vermelho. Ignorou. Aumentou a velocidade enquanto eu me aproximei fazendo tempo para que o verde regressasse. Ao longe o carro branco desaparecia. Surpresa! No primeiro cruzamento tentou virar à direita. Travou. O piso molhado. O reclamar dos pneus. A traseira que se antecipa. O muro que não se desvia. Um impacto seco. O guarda-lamas traseiro esquerdo todo amarrotado.
Parei. - Precisa de ajuda? Não está ferido pois não? Quase me desmanchava a rir. O individuo fomegava pelos narizes: caralho! porra! merda para isto! foda-se!... E eu continha-me afogando uma gargalhada. - Veja lá se precisa de ajuda?
O semáforo seguinte estava verde...
2 comentários:
Antes de mais deixa.-me agradecer-te pelo tempo a k dedicas a este blog e aos "pequenos prazeres" que dás aos leitores que o seguem...
Quanto a este post, é mais uma (triste) realidade do nosso país, onde o civismo fica fechado em casa a sete chaves e impera a rapidez cá fora. Não que eu não tenha já acelerado num sinal vermelho, mas quando se sabe que há uma sequência de sinais encadeados, para que tentar o destino e correr riscos desnecessários.
Imaginando-me na mesma situação, devo de dizer que iria rir até não poder mais, especialmente se só tivessem havido danos materiais.
Mais uma vez parabéns...
Obrigado pelo comentário. Confesso que é com prazer que construo este blogue quase diariamente.
Enviar um comentário