quarta-feira, dezembro 19, 2007

DA AUTOMOTORA AO AVE




Já não lembrava a última vez que tinha sentado o traseiro no banco de um comboio. Até à viagem para Madrid, do outro dia, quase tinha esquecido que já foi, em tempos, o meu meio de transporte preferencial. Nos primeiros anos de escola, em Olhão, conheci o balançar cadenciado das automotoras de bancos de madeira desconfortáveis como pedras polidas, que circulavam na linha do Algarve.

Decidimos, nós, não levar o carro para Madrid, logo deixá-lo em Sevilha e seguir no AVE para a capital espanhola era a decisão acertada. Apesar da decisão já ter semanas, só na véspera, procuramos comprar os bilhetes via Internet. Fomos dormir já com os bilhetes na mochila e menos euros na conta bancária, mas seguros do transporte.
Exactamente às 14:30 o comboio saiu de Santa Justa com destino a Atocha. Depois do anúncio em castelhano foi a vez de, num Inglês quase imperceptível, informarem os passageiros que a viagem teria a duração de duas horas e trinta minutos e faria apenas uma paragem em Córdoba. Sorrindo do «ingrês» senti-me acomodar num avião. Ia voar baixinho sobre as planícies do sul de Espanha. O interior do AVE permitia a confusão. A sofisticação do mobiliário e equipamentos lembravam-me um qualquer Airbus. Monitor de imagem no tecto, equipamentos de som, revistas, jornais, estofos azuis e brancos confortáveis, quase 5 estrelas!
Todos se preparavam para uma viagem longa, embora rápida. As leituras habituais, os inevitáveis portáteis de trabalho ou para lazer e os inefáveis telemóveis que não paravam de tocar. Os toques de telemóvel tornaram-se então, irritantes de tão persistentes. Desde os tradicionais toques, às músicas de momento o toque mais original era o que emitia a voz de uma menina que dizia até não se poder ouvir mais: «Papi! Recorre el mobil, te quiero hablar, papi...» O famoso toque do « Porqué non te callas?» não se escutou por ali. Mais tarde, gravado em T-shirts penduradas nos estendais das tendas do Rastro não faltaram.

Os olivais, a perder de vista, corriam como loucos pela janela do comboio e o Shwasy jura ter visto um javardo junto à linha. Quando me esgueirei para ver, já o animal estava a quilómetros de distancia! Sempre voando baixinho a viagem durou o tempo do filme que passou para nos entreter.
Não posso deixar de referir o anuncio de chegada a Atocha me fez vir à memória as imagens do 11-M.

Entre a automotora a gasóleo, pachorrenta e desconfortável que me transportava entre a Fuzeta e Olhão e o AVE que liga Sevilha a Madrid estão várias décadas de desenvolvimento tecnológico e económico. As automotoras já há muito saíram de circulação, enquanto a alta velocidade só agora dá os primeiros passos em Portugal. Não sem muita polémica e dúvidas quanto à sua rentabilidade e financiamento. Portugal não deve ficar fora da rede, sob pena de ainda se tornar mais periférico do que já é, nesta Europa cujo centro se tem deslocado para leste.

Esta linha do AVE já opera há mais de 15 anos. Na época tornou-se o símbolo do desenvolvimento económico do país vizinho. Passado todo este tempo confiro com tristeza que se nota sem dificuldade que ao entrar em Portugal se chega a um país bem mais pobre que o que ficou para trás. No entanto a rede de transportes é a área onde menos se nota essa diferença. É sobretudo ao olharmos as cidades que sentimos o abismo do desenvolvimento entre os dois países. A degradação urbana das nossas urbes não engana. Mas também na cara dos seus habitantes se vê a diferença. Não é tão evidente, mas é sobretudo na mente e nas atitudes dos cidadãos que se vê que teimamos em nos distanciar do desenvolvimento que atingiu a sociedade espanhola.
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