Vivo rodeado por duas pessoas que têm como bebida de eleição o café. A minha colega é capaz de beber um café de hora a hora numa cadência inimaginável quase suicida, mas essa minha opinião não é suficiente para a demover de beber chávenas da negra bebida como se fossem balões de oxigénio para continuar viva.
O meu homem é outro que tal. Não consegue proferir uma frase com sentido, antes de beber dois cafés, pelo menos. Só se transforma num ser humano de verdade depois de ter reposto o nível de cafeina no sangue suficiente para acordar os neurónios ainda adormecidos.
Hoje ao jantar voltamos a recordar pela milésima vez a estória do café mais desesperada que já vivemos. Aconteceu há alguns anos atrás no país dos faraós. Tínhamos passado uma semana inesquecível descendo o Nilo até Assuão. Depois de uma visita aventureira a Abu Simbel subimos de comboio ao Cairo. E, agora depois de visitar os lugares históricos do Egipto, queríamos descansar ao sol, aproveitar as praias e as águas cálidas do Mar Vermelho em Hurgada.
Do Cairo para o hotel a viagem era feita num autocarro expresso que ia atravessar o deserto ao longo de mais de 700 quilómetros. Como foi possível contratar tal serviço? Tantos quilómetros de autocarro quando o avião demoraria 1 hora, no máximo, mas a agência não nos deu alternativa, aquele programa com uma semana de praia no Mar Vermelho era com transfer em autocarro. Iniciamos a Viagem cedo, creio que por volta da 8 da manhã. O guia da agência levou-nos ao local de partida, deu-nos os bilhetes e certificou-se que seguimos no autocarro certo. A chegada estava prevista para o fim do dia num hotel da Paris Hilton. Depois de horas a olhar pela janela uma paisagem desolada, lixo voando ao vento e marcada de tempos a tempos por poços de petróleo em laboração, a falta de um café começou a fazer-se sentir. O autocarro seguia a bom ritmo sem intenção de parar. Os assentos começavam a tornar-se desconfortáveis e o cansaço a tomar conta de nós. Não lembro onde almoçamos. Só sei que depois de muitos quilómetros, já não longe do mar o «chauffeur» lá se decidiu a parar na «Mimosa» lá do sítio. Um café/snack-bar de beira de estrada era um oásis redentor. Teria certamente água fresca, snacks, café, sei lá, um pouco de civilização naquele desterro de fim do mundo de uma estrada infindável rodeada de nada de lado e lado, sem viva alma por perto. Pior desterro só a correria de 500 quilómetros entre Assuão e Abu Simbel numa caravana escoltada pelas autoridades egípcias que receavam atentados terroristas contra os turistas ocidentais que tudo faziam para visitar o templo nas margens do lago Nasser, já quase na fronteira com o Sudão.
O Shwasy desesperava por um café que o ressuscitasse daquela letargia imposta pela pasmaceira da paisagem e pelo serpentear infinito e hipnotizante da estrada. Os outros passageiros, quase todos cidadãos locais, tinham-se espalhado ao comprido, pelos bancos e deixado dormir, sem pudor, como se estivessem em suas próprias casas. Já parados olhei para o edifício e tive a sensação de estar numa qualquer estação de serviço semi abandonada no deserto do Arizona onde o dono do bar é um «serial killer» esfregando as mãos por viajantes incautos. Imaginem o aspecto cuidado do lugar! A areia inundava o espaço exterior trazida pelo vento do deserto. O pó por todo o lado era uma capa protectora que impedia a identificação dos materiais de que eram fabricados os objectos cuidadosamente desordenados no átrio. Entramos num armazém amplo e pobre. O calor sofocava, o ar empoeirado dificultava ainda mais a respiração. Algumas mesas corridas convidavam os viajantes a descansar enquanto o pessoal de serviço tomava conta dos pedidos feitos.
O Shwasy olhou à volta e conseguiu ver uma máquina de café. Dois cafés por favor, ou melhor: caffée, cofee, café, yes? Ya!café? Esperamos, bebendo com os olhos o inóspito local, de aspecto desolador. A música árabe dava um ar familiar ao local. Não havia nada para comer que vencesse o receio de uma diarreia. Os imodium, levados de Portugal em abundância, estavam quase com o stock a meio e as férias também. No entanto estavam a ser as melhores férias da nossa vida.
Finalmente o empregado aproximou-se com duas chávenas, ou melhor, com duas malgas de alumínio e duas «chocolateiras» com café árabe. Olhamos um para o outro e sem dizer nada olhamos e pensamos: e a máquina de café expresso? Onde está? voltamos a olhar para o balcão e não vislumbramos qualquer máquina semelhante à que o Shwasy tinha visto ao chegar. No deserto as miragens são reais. Não havia máquina de café por perto. Paciência.
Aquele café já era nosso conhecido. Tínhamos bebido um em Gizé. Era um «bule» de água quente com uma colher de sopa de pó de café a girar em espiral que dava à água um tom acastanhado barrento. Era necessário aguardar que o pó acentasse no fundo e depois servir. O sabor deste café é traumático para um português habituado a beber «italianas» a toda a hora do dia ou da noite. Já o autocarro tinha os motores em marcha ainda nós não tinhamos conseguido sorver três tragos da mistela, nem nos refazer da desilusão sofrida.
Já contamos esta estória um ao outro dezenas de vezes e sempre rimos da situação. A miragem da máquina de café no deserto egípcio.
A semana que se seguiu foi fantástica, para mim só superada pela que lhe antecedeu. Foram até hoje as melhores férias da minha vida.
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4 comentários:
O teu homem? que expressão engraçada LOL
O famoso café turco, bebido na maioria dos países árabes, é de facto um fraco consolo para quem está habituado ao nosso bom café. Mas devo-te dizer que viajo com uma certa frequência, por motivos de trabalho, e já vou encontrando bons expressos um pouco por todo o lado. Também não morro se não beber café, tenho essa vantagem.
Buen blog! Saludos desde Lima, Peru.
que estória deliciosa... e achei um piadão a ter lido escreveres "estória" tal como é meu hábito fazer, em vez de "história" sei que já caiu em desuso esta distinção... ou então é porque não se sabe a diferençae usa-se o que sabe... mas foi engraçado de ver tal como de imaginar esta miragem. que bela viagem deve ter sido. há! e os imodiuns! a piece de resistence que me levou ás lagrimas...
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